Será que existe crime cultural? Porque hoje cedo, ao caminhar pelas ruas do meu bairro, que abriga uma universidade federal, dei de cara com um. Na beirada de um terreno baldio, misturado a restos de lixo, jaziam livros, muitos livros.
Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Júlio Verne, Almeida Garret, entre outros menos conhecidos, agonizavam ali, em meio a sacos de ração, restos de materiais de construção, mato, materiais escolares sem uso. Eu mal acreditava na cena. O que mais me chocou: o crime aconteceu a poucos metos do campus Santa Mônica, onde existe uma biblioteca que provavelmente acharia uma finalidade melhor para aqueles livros, maculados pela ignorância de algum ser vivente.
Liguei para meu sobrinho e perguntei se a escola pública onde ele dá aula tem biblioteca. Contei do ocorrido e ele me disse que sempre recebem doações. Fui até minha casa pegar o carro, voltei e peguei todos os livros que não haviam sido destruídos pela chuva da noite anterior. Consegui resgatar cerca de 30 obras, muitas de literatura infantil. Apesar de terem pego chuva, não haviam se estragado completamente. Vamos deixá-los no sol e ver o que ainda poderá alegrar as prateleiras de uma biblioteca.
Quando folheamos o livro, o que nos chocou foi que muitos deles eram exemplares doados a um professor. Normalmente as editoras carimbam estas obras. O exemplar de Júlio Verne era de 1969, um dia foi dado de presente de Natal para alguém. Na manhã deste domingo agonizava em um terreno baldio. Confesso que senti vontade de chorar de raiva.
O que atraiu meu olhar quando passei pelo terreno foi o livro A Vaca Voadora, de Edy Lima. Meu pai me deu essa coleção quando eu era criança. Eu morria de rir com as peripécias do quadrúpede e de sua família meio maluca. Foi uma de minhas primeiras leituras, recem alfabetizada.
Que cidade é essa onde uma pessoa joga livros fora ao invés de doá-los a uma biblioteca? Seria tão difícil assim que esse ser humano (se é que podemos chamá-lo assim) caminhasse poucos metros até a biblioteca da Universidade Federal de Uberlândia? Tenho certeza que, mesmo sem serem livros acadêmicos, seriam acolhidos e encaminhados de maneira adequada para alguma escola pública. Seja quem for o autor dessa atrocidade cultural, ele preferiu jogar fora, em um terreno baldio, as letras que podem ainda marcar a infância de tanta gente, como marcaram a minha.
Eventualmente, costumo me referir a Uberlândia como uma cidade "inculta e bela". A cultura, em suas diversas manifestações, parece fazer sentido apenas para poucos. O engraçado é que pouco antes de minha caminhada matinal, li a coluna do articulista Ivan Santos, do jornal Correio, onde encontrei as seguintes palavras:
"Escrever hoje em dia está ruço. É difícil paca. A maioria dos leitores não frequenta dicionários e, quando não sabe o sentido de uma palavra, segue em frente sem se importar com o verdadeiro sentido da expressão. Cada um interpreta um texto como lhe convém ou pode. (...) Vou me esforçar para escrever na Língua Brasileira porque a Portuguesa tornou-se arcaica por aqui. A humanidade moderna caminha a passos largos em direção a uma sociedade robotizada onde não será preciso ler nada."
Pela minha experiência profissional, imagino que o senhor Ivan Santos foi obrigado pelo jornal a nivelar por baixo seus textos, para que as novas gerações possam entender o que ele escreve. São textos sempre recheados de metáforas e ironias, realmente incompreensíveis para quem não frequenta dicionários ou joga livros fora porque eles ocupam espaço nos pequenos apartamentos onde nos confinamos, com nossas imensas TVs de 40 polegadas onde absorvemos atenciosamente cada discussão dos big brothers da vida.
Obrigada pelas suas palavras senhor Ivan. Muitas vezes não concordo com o que o senhor escreve, mas para fechar este texto, escolhi essa citação de Voltaire, que aprendi ainda jovem e me ensinou a respeitar as opiniões alheias:
"Posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo. "
Um comentário:
Também fico inconformado com isso. Há uns dois anos, neste mesmo bairro encontrei dezenas de livros didáticos novinhos no lixo. Enchi o porta malas do carro com eles e levei para um pessoa que os encaminhasse para doação a alguma biblioteca.
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